20 janeiro 2008

Entrevista a Adriano Moreira - Abril de 2006

O texto que hoje publico é uma entrevista que fiz ao Prof. Adriano Moreira. O conteúdo, apesar da entrevista ter sido feita há quase dois anos, mantém-se actual e talvez algumas coisas que são aqui ditas façam mais sentido agora do que na altura em que a realizei.

José A. Silva: Nos últimos meses, a questão da energia nuclear tem sido objecto de grande atenção por parte dos meios de comunicação. Esta discussão centra-se, por um lado, na produção de electricidade a partir de energia nuclear e, por outro, na existência e possível utilização de armas atómicas. Como encara o uso, civil ou militar, deste tipo de energia?

Adriano Moreira: Não basta a informação e o saber, também é preciso respeitar a sabedoria, quer dizer, o conjunto de valores que podem ser postos em perigo, por falta de um código de conduta na utilização do saber. Há um fenómeno que tem acompanhado toda a globalização, uma lei da reflexividade: a área dominante intervém noutras áreas. Transfere, por via legal ou ilegal, o saber e a técnica. E esses lugares, que parecem subordinados, organizam uma resposta inesperada (…). Neste momento há um número suficiente de países [que dispõem de arsenal nuclear] para ser altamente preocupante. E é aqui que intervém um conceito, que é um conceito confessadamente americano, mas talvez participado por todos os países ocidentais, que têm a bomba ou a capacidade de a ter…

JAS: Poderíamos incluir nesse grupo de países o Estado de Israel?

AM: Com certeza, é uma das questões, todos eles! São todos os estados que têm o domínio da energia nuclear, sobretudo para fins militares, estão envolvidos nesta questão conceptual e conflituosa, porque o que os ocidentais consideram um estado confiável não é aquilo que do outro lado consideram confiável, de maneira que a situação de risco é enorme, neste momento. Por isso, a única solução racional é o desamamento e para isso é preciso um grande acordo, reforma das Nações Unidas, mas sobretudo que essa reforma corresponda a uma mudança de mentalidades. (…)

Neste momento, há uma mudança dos países ocidentais, sobretudo dos EUA. Eles já não confiam no método democrático, é preciso que o método seja democrático e o resultado seja aceitável. Essa lei da reflexividade já teve manifestações terríveis, uma delas é que enquanto nós olhamos para a legitimidade para intervir e não intervir nas Nações Unidas. A NATO tem um conceito de legitimidade diferente. A União Europeia quer um conceito de legitimidade próprio. Vários países invocam o conceito soberanista da sua legitimidade. (…) Neste momento, a impressão que dá é que o conceito volta ao de cima, há um conflito pelos recursos. E o conflito pelos recursos pode levar à guerra.

Portanto, há todo este panorama de grande inquietação, é um panorama de risco, a meu ver extremamente agudo e por estas razões, e claro que o Médio Oriente é um ponto central de toda esta questão, não apenas o Irão, naturalmente, como a Al-Qaeda (pelas bases que tem ali disseminadas). Mas também é preciso não esquecer a situação da Palestina, também é uma situação que tende a agravar esta questão.

Quanto à utilização da energia atómica para fins pacíficos, eu acho que o problema mais sério (para o qual ainda não vi resposta nos textos que posso ler), diz respeito aos resíduos. Eu sei que a técnica que se aperfeiçoou, sei que Chernobyl foi um grande aviso, mas os responsáveis vão dizendo, de então para cá, que a capacidade de dominar tecnicamente esta actividade, que é enorme, não consegue evitar o erro humano. Mas isso é em todas as nossas actividades. O erro humano é sempre possível, o erro da máquina também. Mas o problema que eu continuo a achar mais preocupante diz respeito à questão dos resíduos.

A humildade sobre a utilização da técnica é uma referência que não pode ser esquecida.


JAS: Considera que a atitude de desafio, dos dirigentes iranianos, são um sinal de que o Irão é uma ameaça à estabilidade internacional? Ou esta atitude será uma “fuga para a frente” do regime, uma intimidação aos EUA e seus aliados, perante as perspectivas da iminência de um ataque militar?

AM: No caso israelita, se o governo do Irão anuncia que quer riscar Israel do mapa, naturalmente, está a criar o risco da resposta antecipada. Aí vai surgir uma dúvida: se a reacção é uma guerra preventiva, porque a guerra preventiva não é considerada legítima, mas é preciso ver quando é que a guerra deixa de ser preventiva.

JAS: E acha que o Estado de Israel pode recorrer ao uso de armas nucleares?

AM: Pode, invocando a agressão em progresso, para escapar á acusação de estar a recorrer à guerra preventiva. E, naturalmente, se invocar isso, invoca com fundamentos que, enfim, se for persistente, e consistente, a ameaça do governo do Irão, têm algum fundamento. O próprio ocidente tem que pensar nessas coisas, também, não nos ternos da guerra preventiva, como, repito, é um conceito que a doutrina rejeita, de uma maneira geral, embora, do ponto de vista técnico, alguns sustentem, embora alguns sustentem, mas do ponto de vista ético, jurídico, é reprovado. Mas a agressão em progresso, provavelmente, a resposta já não cabe no conceito de guerra preventiva…

JAS: Como comenta a ideia de que a onda de violência despoletada pela publicação de caricaturas do profeta Maomé, na imprensa ocidental, terá sido utilizada pelos líderes religiosos muçulmanos como uma forma de galvanizar as opiniões públicas dos seus países contra “o Ocidente”?

AM: Bem, não foram exactamente “os líderes religiosos muçulmanos” que desencadearam isso. Eu julgo que houve uma manipulação das massas, isso é indiscutível…

JAS: Por parte de quem, Professor?

AM: É preciso ter respeito pela fé de cada um, de cada povo e de cada cultura. Isso não tem que ver com a liberdade de exprimir opiniões. É evidente que, se uma caricatura (aliás, sem grande mérito artístico), desencadeou uma onda destas, isso só foi possível pela manipulação das massas. Eu acho que, uma das razões da possibilidade de manipulação é que há uma circunstância de angústia que domina muitas comunidades. Essa situação de angústia é que propicia o recrutamento dos desesperados. Não é a comunidade que é recrutada para a violência. Certos poderes assimétricos, como a Al-Qaeda, introduziram no seu conceito estratégico elementos religiosos. Neste momento, a nossa concepção [ocidental] é a de que o Estado deve estar separado dos valores religiosos, nos seus conceitos estratégicos. Mas já tivemos essa prática. E com esses elementos religiosos, [os poderes assimétricos] mobilizam os desesperados.
Esta é a situação, que é gravíssima. E tem que haver uma resposta para isso. O primeiro governo que organizou essa resposta foi o governo Inglês, chamando os líderes religiosos para que eles explicassem que os livros santos não santificam o terrorismo. Nós tivemos [em Portugal] uma manifestação, que eu considero importantíssima, desse apelo. E, talvez isso interesse para a sua concepção profissional. Os meios de comunicação não prestaram grande atenção, talvez porque não tinha nada de alarmante… Veio a Portugal o Aga Khan[1] receber um Doutoramento Honoris Causa pela Universidade de Évora. [No seu discurso], disse que também estava ofendido com as caricaturas: “não posso admitir que brinquem com a nossa fé. Mas aquilo em que nós estamos,” disse ele, “não é uma guerra de culturas ou de civilizações, [mas] uma guerra de ignorância recíproca. Temos que compreender-nos!” Esta mensagem, que equivale ao que o governo britânico fez, quando chamou os líderes para esse diálogo, não é uma coisa que esteja, a meu ver, a ser valorizada e a comunicação social tem um grande papel, devia ajudar a valorizar estas intervenções…

JAS: Krassimir Petrov sustenta a tese de uma “hegemonia americana”, que se baseia na “imposição da sua moeda”, como único meio de pagamento para as transacções de petróleo, obrigando os estados compradores a ter grandes reservas de moeda americana, em permanente depreciação, para fazer os pagamentos das suas importações petrolíferas. Este teórico chama “Imposto Imperial” a esta depreciação do dólar e afirma que os Estados Unidos recorrerão a todos os meios para que esta situação não se altere, o que poderia acontecer se o Irão começasse a vender o seu petróleo em euros. Como pode comentar esta tese?

AM: É evidente que um país que é vendedor e que tem uma posição no mercado, que não lhe pode ser retirada, [pode exigir o pagamento] na moeda que quiser. É um problema de guerra pelos recursos. Naturalmente, se vai fazer uma compra e exigem o pagamento numa moeda que não tem, ou não lhe interessa, vai fazer a compra a outro sítio. Agora, se houver uma rigidez de oferta e houver essa força [por parte do fornecedor], se ele mudar de moeda está a incomodar bastante o comprador. [Porque], quando se recusam a moeda, a moeda sofre. As pequenas experiências individuais ajudam a perceber isso. Eu lembro-me perfeitamente que, da primeira vez que, depois de 1974, eu vinha do Brasil, de avião (fumava, nessa altura), quis comprar cigarros e recusaram-me os escudos.

JAS: Por causa da instabilidade que se vivia nessa altura…

AM: Efectivamente. Se a gente recusa uma moeda… os países cuja moeda não é confiável têm esse drama, não se aceitam pagamentos na moeda deles. Portanto, ele [Petrov] o que está aí a desenvolver é uma nova guerra. Ou um novo aspecto da guerra.

JAS: Este autor anuncia, inclusivamente, uma iminente “morte do Dólar”.

AM:
É uma nova guerra. Os Estados Unidos já tiveram um problema, que não é parecido, mas que nos afectou, que foi, no tempo de Nixon, quando a ameaça gaullista de retirar as suas reservas de Fort Knox o levou a declarar a inconvertibilidade do dólar. Essa é uma área muito sensível…

1 O Aga Khan, 49º Imã hereditário dos Muçulmanos Shia Imami Ismailis (o «Imamat Ismaili»), estabeleceu, orienta e dirige um grupo de agências de desenvolvimento internacional autónomas, a Rede Aga Khan Para o Desenvolvimento (AKDN) -, a qual contribui para programas de desenvolvimento em países de África e da Ásia

Sem comentários: