02 maio 2008

Uma perspectiva sobre a independência do Kosovo

Uma perspectiva sobre a independência do Kosovo - Seminário de Segurança e Defesa II - 30 de Abril


A recente proclamação unilateral de independência do Kosovo, seguida do reconhecimento imediato, pelos Estados Unidos e pela maior parte das principais potências europeias, levanta novas questões à sociedade das nações. A urgência das principais potências em salvaguardar os seus interesses estratégicos leva a que os países contornem as regras do Direito Internacional. Neste trabalho avaliamos, por um lado, os moldes deste processo político, através de uma análise aos antecedentes e condicionalismos, étnicos e históricos que estão na origem do problema. Num segundo momento, fazemos a aproximação possível às consequências legais, éticas e práticas que podem advir deste processo, em termos de implicações internacionais, tendo em conta a marginalidade do mesmo face às convenções vigentes.


As Jugoslávias e o Kosovo

O Kosovo fez parte do Império Otomano desde 1389 (ano em que os sérvios foram derrotados na batalha de Kosovo-polja) até às guerras balcânicas (1912-1913), quando o Reino da Sérvia anexou a Macedónia. Nessa época, o Kosovo era parte da região administrativa de Skopje. Quando os sérvios anexaram a parte norte da Macedónia, na altura sob domínio turco, transformaram a região do Kosovo numa província do seu Estado, com o argumento de que aquela região era o berço da sua nacionalidade. Em 1918 foi fundado o Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos. Foram unificados politicamente, sob a coroa sérvia, os povos eslavos que compunham o mosaico étnico resultante de séculos de disputas territoriais entre os impérios Austro-húngaro e Otomano.

Em 1929 este país passou a chamar-se Reino da Jugoslávia (Reino dos eslavos do sul). Uma grande conflituosidade entre as diferentes etnias originou uma guerra civil que duraria até ao fim da 2ª Guerra mundial. A ocupação fascista cimentou ódios antigos. Enquanto sérvios, croatas e bósnios se digladiavam entre si e contra o invasor, a Albânia, apoiada pelas tropas de Mussolini, ocupou o Kosovo e os albaneses expulsaram grande parte dos sérvios que viviam no território. Tendo contribuído de forma importante para a derrota das potências do Eixo, Tito e os seus partizans (guerrilheiros comunistas apoiados pela União Soviética) fundaram, em 1945, a República Socialista Federal da Jugoslávia, que congregava seis repúblicas: Sérvia, Croácia, Eslovénia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro e Macedónia.

Uma frase podia caracterizar a Jugoslávia de Tito: “Seis repúblicas, cinco etnias, quatro línguas, três religiões, dois alfabetos e um Partido”. Este sistema mostrou-se eficaz para forçar a convivência entre as etnias: atenuava as divisões religiosas e continha os nacionalismos (características dos regimes socialistas/comunistas). Tito promoveu a integração de todas as etnias, mas não permitiu o regresso dos sérvios que tinham sido expulsos do Kosovo durante a guerra. Com a morte de Tito, em 1980, a estabilidade étnica, até aí mantida com mão-de-ferro pelo regime, começa a mostrar sinais de fraqueza.

Verifica-se um reacendimento das antigas disputas étnicas, através do ressurgimento dos nacionalismos extremistas, por todas as partes. Em 1981, os albaneses do Kosovo fazem manifestações nas quais pedem a criação de uma República do Kosovo, no contexto da Jugoslávia. A Polícia e o Exército reprimem as manifestações com violência. Os protestos que se verificaram nos anos seguintes, levaram o recém-eleito presidente da Sérvia, Slobodan Milosevic, a retirar, em 1989, a autonomia administrativa que tinha sido concedida por Tito em 1974.

O regime jugoslavo tinha atribuído o estatuto de Região Autónoma ao Kosovo e à Voivodina, devido à composição étnica destas províncias (o Kosovo pela sua maioria albanesa e a Voivodina pela sua importante minoria húngara). Em resposta à retirada da autonomia, os albaneses do Kosovo proclamaram, em 1990, a sua independência, reclamando ser uma das Repúblicas Federadas. A partir desse momento intensifica-se a repressão do Exército Federal no território.

As guerras que, entre 1991 e 1997 dividiram a República Socialista Federal da Jugoslávia, deram origem aos Estados da Eslovénia, Croácia, Antiga República Jugoslava da Macedónia, Bósnia-Herzegovina e Federação Jugoslava (resultante da manutenção da união política entre a Sérvia e o Montenegro). Em 1996, tinha sido formado o Exército de Libertação do Kosovo (UÇK). Em 1998, as acções de guerrilha intensificam-se e o Exército Jugoslavo reforça o contingente no Kosovo, para conter os separatistas.

A intensificação das acções militares fez com que alguns países da NATO manifestassem o seu apoio aos guerrilheiros albaneses do UÇK, com o propósito humanitário de evitar a repetição dos crimes de guerra, cometidos pelos sérvios durante a guerra da Bósnia. Em Março de 1999, a NATO, sem consentimento do Conselho de Segurança das Nações Unidas, realiza uma grande vaga de bombardeamentos contra a Jugoslávia (à data composto pela Sérvia e pelo Montenegro), para que cessem as hostilidades dos sérvios contra civis albaneses no Kosovo.

A ONU aprova a resolução 1244 em Junho de 1999. A Polícia e o Exército Jugoslavos são forçados a abandonar a província. Ao abrigo desta resolução, a NATO constitui a KFOR e a ONU forma a MINUK, a quem passa a competir a administração do território. Nos meses seguintes, mais de 200 mil kosovares, de etnias não-albanesas, deixam a província. Estes cidadãos sérvios, judeus e ciganos são expulsos, quando os albaneses que tinham fugido para a Albânia e para a Macedónia, durante as anteriores perseguições sérvias.

Em 2003, a Sérvia e o Montenegro extinguem formalmente a Jugoslávia, que dá lugar a um novo país, designado Sérvia e Montenegro. Após um referendo, em 2006, o parlamento montenegrino acabou por declarar a independência. O moderado e europeísta Boris Tadic venceu as presidenciais sérvias a 3 de Fevereiro de 2008. A declaração de independência foi proferida no dia 17 pelo Primeiro-ministro e antigo guerrilheiro Hashim Thaçi.


Mediação internacional

O mediador nomeado pelas Nações Unidas para a questão do Kosovo, o finlandês Martti Ahtisaari apresentou, em Março de 2007, um relatório que apresentava a independência como sendo a única opção viável para resolver o problema. Este relatório, apesar de registar a impossibilidade da aceitação, pelos albaneses, do regresso à soberania sérvia, admitia que o Kosovo tem uma capacidade limitada para promover o desenvolvimento democrático e a recuperação económica, ou gerir a reconciliação nacional e protecção das minorias.

Em Julho, o Conselho de Segurança da ONU termina o processo de consultas sem alcançar um acordo. A Rússia opõe-se, visto que a Sérvia considera o plano de Ahtisaari inaceitável. Em Novembro, o antigo líder guerrilheiro Hashim Thaçi, do Partido Democrático do Kosovo (KDP), vence as eleições legislativas kosovares, consideradas ilegais por Belgrado.

A Rússia afirma que a independência do Kosovo pode originar a formação de uma Grande Albânia, o que pode provocar, tanto na Sérvia como na Croácia, novas tentativas de expansionismos, desta vez em relação aos territórios da Bósnia-Herzegovina. É nesse argumento, partilhado com a Rússia, que a Sérvia se apoia para recusar o plano proposto por Martti Ahtisaari.


Viver no Kosovo: uma economia dependente

Dos dois milhões de habitantes, estima-se que cerca de metade viva com carências alimentares. A taxa de natalidade do Kosovo tem sido, nos últimos anos, uma das mais altas da Europa, tendo actualmente um terço da população com menos de 14 anos. A economia não tem capacidade para criar novos empregos. A sobrevivência económica dos kosovares albaneses tem sido, ao longo dos últimos anos, assegurada pelas remessas dos cerca de 375 mil emigrantes, que residem principalmente nos Estados Unidos, Alemanha e Suíça. Estas remessas rondam um valor anual de cerca de 450 milhões de euros.

A actual taxa de desemprego do território ronda os 40%. O sector público e as organizações internacionais empregam a maior parte da população activa. Apesar dos baixos salários, visto que as organizações internacionais são os empregadores que melhor remuneram os seus funcionários, o custo de vida no Kosovo equipara-se ao dos países da UE.


Implicações internacionais da declaração de independência

A declaração unilateral e sustentada pelas principais potências mundiais, põe em causa a legitimidade que estes países dizem reconhecer à ONU, como única entidade a quem é reconhecida essa competência do Direito Internacional. Antes da declaração kosovar, altos responsáveis políticos russos sugeriram que uma proclamação unilateral poderia obrigar a Rússia rever as posições face às repúblicas autoproclamadas da Abkházia e da Ossétia do Sul (regiões separatistas da Geórgia, com importantes populações russófonas) e da Transnístria, secessionista da República Moldova.

A declaração (e reconhecimento) da independência do Kosovo abre um precedente, para muitas outras entidades governativas que procuram obter o reconhecimento internacional dos seus países, além dos já referidos, como a Palestina, o Sara Ocidental, o Nagorno-Karabakh, ou até o País Basco e a Catalunha.

A resolução 1244 reconhece o Kosovo como uma província da Sérvia. Os países que reconheceram a independência sustentam a tese de que a resolução já não se aplica ao território, visto que já não existe a entidade política Federação Jugoslava, que integrava duas repúblicas (Sérvia e Montenegro) e duas Regiões Autónomas (Kosovo e Voivodina).

A Rússia, ao ver grandes bases militares americanas às suas portas, encara a possibilidade de expandir, de facto, o seu território. Ao reconhecer a Abkházia e a Ossétia do Sul, a Rússia cresce para sul, absorvendo território georgiano, reconhecido pelo Direito Internacional. Houve até rumores, na última cimeira da NATO, de que Putin teria manifestado a intenção de ocupar partes da Ucrânia se este país aderisse a esta organização.

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